Projeto contribui para reconhecer a pesca com botos como patrimônio imaterial do Brasil
Yuri Camargo/Projeto Botos da Barra
Interação entre pescadores e cetáceos é observada em Laguna, no Sul catarinense, e na Barra do Rio Tramandaí, no Norte gaúcho
Um projeto de pesquisa executado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) está contribuindo com uma proposta que visa a reconhecer a pesca artesanal colaborativa entre humanos e botos como Patrimônio Cultural do Brasil certificado pelo Iphan.
Com coordenação do professor Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias, o trabalho é desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Canoa – Coletivo de Estudos sobre Ambientes, Percepções e Práticas, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC, e conta com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária (Fapeu). “A Fapeu exerce um papel importante no projeto ao executar a gestão administrativa e financeira, orientando e assessorando a coordenação e os demais pesquisadores da área finalística quanto às demandas e processos relativos ao seu bom funcionamento”, destaca o professor.
A proposta de reconhecimento da atividade como bem imaterial foi encaminhado ao Iphan em dois momentos: em 2017, pela Pastoral da Pesca de Laguna, vinculada à Diocese de Tubarão (SC), e em 2019, pela Associação Comunitária de Imbé – Braço Morto, sediada em Imbé (RS). O projeto realizado pela UFSC agora vai elaborar o dossiê de Registro que será encaminhado para votação do Conselho Nacional do Patrimônio Cultural. Esse dossiê é composto por pesquisas, documentos e material fotográfico e audiovisual etnográfico. A pesca artesanal com botos já é reconhecida como patrimônio imaterial do Estado de Santa Catarina desde 2018.
INTERAÇÃO ÚNICA
Muito conhecida nos litorais sul catarinense e norte gaúcho, a pesca artesanal com botos é considerada um tipo único de interação e comunicação entre humanos e cetáceos.
Registros apontam que a atividade é praticada há mais de um século por pescadores artesanais e populações de golfinhos do gênero Tursiops em estuários lagunares em Laguna (SC) e no Rio Tramandaí, entre os municípios de Tramandaí e Imbé, no Rio Grande do Sul.
“Basicamente, a cooperação funciona com os golfinhos localizando os cardumes de tainhas por meio da sua ecolocalização e conduzindo-os até os pescadores. Estes, por sua vez, esperam que os botos sinalizem com movimentos corporais a presença dos peixes para lançarem as suas tarrafas”, detalha o professor Caetano Sordi.
Entre os pescadores é fato: se o boto saltar da água, pode jogar a rede porque o cardume está encurralado. “Ao final, ambos os parceiros se beneficiam da cooperação, pois o impacto das redes na água dispersa as tainhas que se tornam presas mais fáceis para os botos”, define o professor.
Com previsão de conclusão para janeiro de 2025, os trabalhos começaram no segundo semestre de 2023 e são concentrados no complexo lagunar de Laguna e no Rio Tramandaí. “O projeto atende a uma antiga demanda de reconhecimento, documentação, valorização e salvaguarda dos saberes, práticas e paisagens associadas a essa colaboração multiespécie”, lembra Caetano Dias.
COMPROMISSO DO ESTADO
Diferente dos bens materiais, que são produtos da atividade humana, ou seja, construções, artefatos e acervos aos quais a sociedade atribui algum valor para serem preservados, os bens imateriais - ou culturais intangíveis – referem-se a práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer.
“O registro de bens culturais como patrimônio imaterial por parte do Iphan implica o compromisso do Estado brasileiro com a sua ampla divulgação e promoção, ampliando o conhecimento e a valorização da sociedade a respeito das referências culturais que fazem parte da identidade, memória e história dos seus diferentes grupos formadores”, destaca o professor Sordi, que integra o Departamento de Antropologia da UFSC.
Os registros mais antigos de pesquisadores e folcloristas sobre a presença dos botos na pesca artesanal do Sul do país remetem às primeiras décadas do século 20. No entanto, uma produção mais sistemática a respeito do tema começou a ser verificada a partir dos anos 1980 e 1990, especialmente com alguns pioneiros como os professores Paulo Simões Lopes, biólogo da UFSC, e Luiz Tabajara, oceanógrafo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Já nos campos da antropologia e do patrimônio cultural, a prática começou a ser objeto de pesquisas e iniciativas de documentação e salvaguarda, com mais frequência, a partir do ano 2000.
“Nesse sentido é importante ressaltar que, dentre os muitos valores (cultural, histórico, ambiental etc.) que fundamentam e justificam o registro, há também o valor científico da prática. Não só pela raridade e singularidade desse fenômeno em nível mundial, como também pelo seu papel na formação de várias gerações de pesquisadores em diversas instituições de ensino superior do Sul do Brasil, como a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), a UFRGS e a própria UFSC”, sublinha o coordenador do projeto.
COSMOPOLITAS E PARCEIROS
Os botos – ou golfinhos – do gênero Tursiops são cosmopolitas, com significativa presença ao redor do planeta. No entanto, as populações que cooperam com humanos no Sul do Brasil possuem algumas singularidades, como sua circulação mais restrita às águas próximas e internas da costa, como os complexos lagunares sul-catarinense e do Rio Tramandaí, e seu pequeno número. Em 2022, estimava-se em Laguna a presença de 60 botos, mas somente a metade realizaria a interação com os pescadores. Já na região de Tramandaí seriam apenas 10.
“É importante notar que, do ponto de vista da biologia marinha, há divergências taxonômicas a respeito destes animais, pois alguns compreendem que se trata de uma espécie à parte (Tursiops gephyreus) e, outros, uma sub-espécie ou população local da espécie mais generalista Tursiops truncatus”, observa o professor. Para o projeto, no entanto, as classificações e percepções nativas dos pescadores têm mais destaque. “Do ponto de vista patrimonial e cultural, importam ao projeto muito mais as formas de convivência, comunicação e referência mútua dessas populações e seus parceiros humanos, os quais diferem entre “botos bons” (que pescam ou trabalham) e os demais botos, que não cooperam”, observa.
O trabalho é fruto de um Termo de Execução Descentralizada entre a UFSC e a Superintendência do Iphan em Santa Catarina. Desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Canoa, o projeto ainda conta com apoio e parceria da Pastoral da Pesca de Laguna e da Associação Comunitária de Imbé – Braço Morto e de grupos de pesquisa sediados na UFSC, na Udesc e na UFRGS.
PROJETO: SABERES E PRÁTICAS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À PESCA ARTESANAL COM O AUXÍLIO DE BOTOS EM LAGUNA/SC E DEMAIS OCORRÊNCIAS NO SUL DO BRASIL / COORDENADOR: Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias / pescacombotos.cfh@contato.ufsc.br / UFSC / Departamento de Antropologia / CFH / 14 participantes
* Esta reportagem faz parte da edição 15 da Revista da Fapeu que está disponível na íntegra para download em https://tinyurl.com/RevistaDaFapeu